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Finados

Ontem senti vontade de falar com ele. Alguma coisa me deixou fora de mim e cutucou feridas que já cicatrizaram. Mas ainda estão sensíveis. Eu quis encontrar com ele na rua e dar um abraço, soube que está de férias, deve aparecer por aqui em breve. Mas o que eu poderia dizer pra ele? Por que eu queria dizer que ficou tudo bem entre nós? Não ficou. Nunca ficará porque não era mesmo pra ficar.  Ontem sensações estranhas me aconteceram. Achei que iria dormir mas me veio um desejo intenso de comer hambúrguer. Quis pedir no lugar que a gente sempre pedia, mesmo sabendo que seria uma escolha equivocada. Foi também o último lugar que pedi comida, enquanto acreditava que a gente ainda existia. Acabou aquela promoção dos dois hambúrgueres, sabia? Ontem comecei a entender que eu estou morando novamente sozinha, depois de dois anos dividindo a rotina. E eu odeio o fato de chorar por conta disso, mesmo nunca tendo sentido falta dele, nem no primeiro dia. Não saber nominar o que tive ainda me causa

Kintsugi

Haviam pedaços. Pedaços espaçados e espalhados de mim por todos os lados. Espaços vazios e o negativo entre os cacos. Foi como se eu acordasse de um sonho e me deparasse com todos eles lá. Não os reconhecia, não sabia como foram ali parar. Tinham cores muito brilhantes, holográficas, cintilavam. Pedaços vibrantes de uma mulher muito viva. Senti como se até aqui, minha vida tivesse sido um grande ensaio. Recebi o roteiro e vim estudando as falas, marcando os passos. Era como se agora, perto da cortina abrir, as cenas aparecessem com mais cor e sentido. Mas faltavam os pedaços. Olhei de novo ao redor sem crer como não os tinha percebido. Será que eu dormi ou eles realmente estavam escondidos? Meu peito pesou e quando passei a mão senti um estranho desconforto: vestia um imã. Debaixo dele, os espaços vazios com tamanhos similares aos cacos no chão. Era eu que brilhava. Era meu peito que se escondia fingindo que não faltava nada. Faltava.  O imã toda vida fora usado do lado errado. Por iss

Antiga

São 01:08 da manhã  Cliquei a tela do celular mesmo sabendo que não tem ninguém pra me mandar mensagem a essa hora Senti confusa o gosto dos textos exaustivamente digitados nas teclas com letras e números Não faz muito tempo, mas já tem uma eternidade  O frisson das histórias contadas por inteiro mas escritas pela metade Minha unha na pele das suas costas  Meu suspiro suave no ouvido A música arranhada por guitarras no banco do carona Os textos de páginas, as conversas de horas avançadas pela madrugada  A internet tem cortado cada vez mais nosso tempo juntos, medindo as emoções por caracteres rasos A profundidade do meu desejo não se adequa a esses tempos Resisto a eles sendo fiel a mim como você nunca foi  Do I wanna know? How many times can you fall in love? Talvez eu esteja me tornando démodé, não me importo: meus amores não são líquidos 

Hora certa

Procuro um amor que não tenha medo do escuro Nem de mergulhar fundo Nem de se refazer Procuro um amor que queira mudar tudo Que queira desbravar o mundo  Que queira enlouquecer  Não quero que me prometa nada Não quero que faça de conta Quero que se mostre sem ter nada a temer Procuro um amor  que chegue na hora certa e que acredite que a vida já é muito boa mas que ela ganha um melhor compasso quando nossos relógios antigos sincronizam

Travessia

{Eu quase nunca escrevo sobre mim Sempre sobre outros, sempre sobre vida, sempre sobre sentir, mas muito pouco, sobre mim Olhar a si tão de perto, nesse processo microscópico, deixa a visão um pouco turva. Não sei se me enxergo bem, ou estou vendo coisas} Estou mais uma vez, encarando a ponte sobre o abismo. Ela sempre me encontra, ela sempre aparece. Do outro lado do vale, o mundo parece mais bonito. A diferença é bem sutil mas intensa: o nasce nasce por lá. Por isso a grama é mais vistosa, por isso tem flores mais coloridas e passarinhos nas árvores. Essa pequena diferença que é a posição do sol muda toda a configuração do lugar.  Eu andei muito pra chegar aqui. A trilha foi mata a dentro, na confiança daquele pequeno raio de sol que guiava ao nascer. A ponte, olhando pra mim. É só atravessar. Nem é tão grande, é logo ali.  Mas é passando em cima do abismo. É encarando que uma vez travessia, talvez nunca mais eu queira voltar. E porquê haveria de querer?  A ponte, olhando pra mim Um

Fresta

Depois de um tempo no escuro nossas pupilas aprenderam o ajuste necessário para enxergar pelas frestas. Se acostumaram com a pouca luz, captam os mais sutis brilhos. Não precisa mais de muita coisa pra ver, ela já enxerga. É possível, inclusive, se manter nesse espaço com muita naturalidade, se mover tranquilamente e com confiança de por onde está passando.  Não é possível ver o todo.  Não é possível ver a cor das parede e dos objetos, nem ler as longas narrativas que eles contam. Mas se você chegar bem perto de onde brilha, é possível sentir as texturas. É possível tocar e se descobrir encantada por ter outra perspectiva de algo que parecia muito diferente na luz do dia. Às vezes a gente acha que precisa de mais, mas na verdade não precisa saber muito. Tava bem escuro quando a gente cruzou nossas vidas Minhas pupilas, já ambientadas me disseram: pode tocar, isso brilha.

Milimétrico

O registro do chuveiro tem que abrir bem pouquinho pra esquentar, disse o dono do apartamento. Eu tava bem cansada e aguardava lavar o cabelo faziam dois dias. Percebi que o chuveiro não respondia. Fechei mais. Nada. A água gelada respingava pelo box e me vinha como um outdoor: você vai ter que encarar.  Era noite e realmente não tinha o que ser feito. Se o registro frouxo não encontrasse o ponto certo, a água não esquentaria. Era muito milimétrico, eu não advinharia. Entendi que não dava pra lutar. Encarei a água fria, num dia ameno. Meu corpo pequeno se tornou menor ainda. Tenso, rígido, tremia. Não ia conseguir ficar por muito tempo. Fechei a água para aplicar o shampoo. Não é o que faço normalmente, mas eu me sentia congelando. Dois dias esperando pra lavar o cabelo, e agora isso. Ironias do destino. Enxaguei tentando limpar bem ao mesmo tempo que fugia dos respingos. O frio circulava no banheiro grande, eu tremia. Lavar meu cabelo exigia pelo menos 4 etapas, com pausas diferentes.

Despedida

Quando a gente marca a data da partida, o corpo inteiro começa seu trabalho de despedida  O ambiente vai se tornando cada vez menos familiar, como se nos tornássemos visitas no nosso próprio lugar. Aquele lustre um pouco torto, aquele quadro que ficou por pendurar, o desejo antes vivo de ajustar agora se transforma num quase silencioso incômodo sobre já não mais se importar Era julho quando você marcou sua data. Sozinho, sem me comunicar, decidiu olhar pra tudo fora e deixar pra lá. Cansou de ter os mesmos problemas pra encarar, perdeu o desejo de apreciar, pareceu tudo difícil demais de lidar. Eu, sem perceber nada, continuei sozinha por nós dois. Eu ainda vivia na mesma casa, que a gente vinha se dedicando a decorar. Mesmo com tantas diferenças, tudo para mim parecia estar entrando no lugar. Mas em setembro sempre chove muito e eu notei que todos os lugares que você ocupava estavam mofados. Na sua ausência a falta gritava - os espaços que ocupava e a bagunça que fazia. A gente só exi