Kintsugi

Haviam pedaços. Pedaços espaçados e espalhados de mim por todos os lados. Espaços vazios e o negativo entre os cacos. Foi como se eu acordasse de um sonho e me deparasse com todos eles lá. Não os reconhecia, não sabia como foram ali parar. Tinham cores muito brilhantes, holográficas, cintilavam. Pedaços vibrantes de uma mulher muito viva.

Senti como se até aqui, minha vida tivesse sido um grande ensaio. Recebi o roteiro e vim estudando as falas, marcando os passos. Era como se agora, perto da cortina abrir, as cenas aparecessem com mais cor e sentido. Mas faltavam os pedaços.

Olhei de novo ao redor sem crer como não os tinha percebido. Será que eu dormi ou eles realmente estavam escondidos? Meu peito pesou e quando passei a mão senti um estranho desconforto: vestia um imã. Debaixo dele, os espaços vazios com tamanhos similares aos cacos no chão. Era eu que brilhava. Era meu peito que se escondia fingindo que não faltava nada. Faltava. 

O imã toda vida fora usado do lado errado. Por isso ao invés de atrair, repelia. Quando cheguei mais perto dos pedaços, eles naturalmente se aproximaram de mim. Não existe nenhum peito sem feridas. Fui me aproximando mais, curiosa pelo destino que viria. Encaixando cada pedaço, sentindo a vida cada vez mais íntegra. Estava sendo mais fácil do que antes parecia. 

Já respirava mais leve e olhava pra dentro, contemplando os encaixes e cores que finalmente reconhecia. Fechei os olhos. Acariciei cada relevo da forma nova que meu peito adquirira quando senti um pequeno espaço vazio. Ali no meio, já quase do lado esquerdo, faltava uma lasquinha. Passei alguns segundos prendendo a respiração sem acreditar que ainda faltava algo, jurava ter terminado. 

Fechei os olhos mais uma vez. Era preciso me recompor, mas ainda doía. Escondi o rosto com as mãos e deixei o choro me encontrar. Um choro denso e metálico foi escorrendo por entre os dedos e percorrendo as juntas dos pedaços, ocupando as pequenas frestas entre eles. Chorei até me esvaziar. Quando acabei, notei que os relevos estavam imperfeitamente completos e vibrantes. Agora sim eu podia repousar. 

Deitei um pouco de olhos fechados para sentir os efeitos que toda essa nova configuração produzia em meu corpo. Soltei todo peso no chão. Havia paz. A sensação reconfortante de estar novamente inteira. O silêncio foi então interrompido por um click abafado, como se dois metais tivessem colidido ali perto. Tateei procurando meu imã e não o encontrei. “Por acaso é isso que você tá procurando?”, disse uma voz no entorno. Abri o olho bem a tempo de ver meu imã sendo desgrudado do que ela carregava. Suas mãos estendidas me ofereciam de volta o meu metal. Notei que no seu peito, debaixo do imã, era possível ver alguns espaços vazios das peças coloridas que ela ainda precisava preencher. “Moça, que diferente isso que você tem. É muito bonito”, apontou surpresa pro relevo no meu peito. “Muito obrigada”, disse eu ao pegar de volta meu imã, ao mesmo tempo que meu corpo inteiro se eletrizava ao tocar-lhe sem querer as pontas dos dedos. Por um instante pensei em dizer que o que ela carregava também era muito bonito, mas lembrei que nesse momento ela ainda não sabia que o tinha: precisaria descobrir isso sozinha. 

Então apenas sorri, entendendo tudo. 

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