Travessia

{Eu quase nunca escrevo sobre mim

Sempre sobre outros, sempre sobre vida, sempre sobre sentir, mas muito pouco, sobre mim

Olhar a si tão de perto, nesse processo microscópico, deixa a visão um pouco turva. Não sei se me enxergo bem, ou estou vendo coisas}


Estou mais uma vez, encarando a ponte sobre o abismo. Ela sempre me encontra, ela sempre aparece. Do outro lado do vale, o mundo parece mais bonito. A diferença é bem sutil mas intensa: o nasce nasce por lá. Por isso a grama é mais vistosa, por isso tem flores mais coloridas e passarinhos nas árvores. Essa pequena diferença que é a posição do sol muda toda a configuração do lugar. 

Eu andei muito pra chegar aqui. A trilha foi mata a dentro, na confiança daquele pequeno raio de sol que guiava ao nascer. A ponte, olhando pra mim.

É só atravessar. Nem é tão grande, é logo ali. 

Mas é passando em cima do abismo. É encarando que uma vez travessia, talvez nunca mais eu queira voltar. E porquê haveria de querer? 

A ponte, olhando pra mim

Um convite e uma espera. É no seu tempo, ela diz. Mas mais um sol se põe e eu sinto frio. Essa jornada é sozinha. É só atravessar, ela diz. 

Mas e se quebrar? Mas e se eu cair? E se o vento balançar muito forte? 

É só segurar firme e seguir. (Ela parece ter resposta pra tudo). Vejo o sol nascer de novo, consigo ver o jardim acordando, tudo brilhando, florindo e sorrindo. Ainda estou sentada, ainda sinto frio. 

O vento balança de leve a ponte e meu cabelo. Mesmo sem levantar eu consigo ver quão alto está. Preciso encarar o medo da morte iminente, preciso sustentar que sou e eu. Contra meu próprio tempo.

Mais um sol se põe e nasce. O frio já deixa meus pés um pouco mais enrijecidos. Nem parece que já aguentaram tanto caminho, nem parece que sabem de cor a jornada. Tomo fôlego, respiro fundo. Ensaio chegar perto da ponte, a vista do abismo me dá um arrepio. Alongo um pouco, mais um sol se põe.

Sinto fome, sinto frio, me sinto mais sozinha do que já estive até aqui. E um pouco cansada. Parece uma ponte muito longa. Será que é melhor passar correndo, ou atravessar devagar segurando aonde dá? E se eu atravessar deitada, se eu me rastejar?

Sou eu e eu, mais uma vez, encarando isso. 

Sou eu e eu, mais uma vez, fugindo disso.

Sou eu e eu, mais uma vez, unidas nisso.

Mais um sol nasce, e hoje nasceu diferente. Nasceu convite banhando aquela cicatriz que eu tenho no dedo indicador. Nasceu afagando dizendo que se eu quiser acordar mais quente amanhã, preciso encarar a ponte.

Levanto e aprecio tudo o que tem do outro lado.

Respiro fundo, fecho o olho e dou o primeiro passo.

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