Finados

Ontem senti vontade de falar com ele. Alguma coisa me deixou fora de mim e cutucou feridas que já cicatrizaram. Mas ainda estão sensíveis. Eu quis encontrar com ele na rua e dar um abraço, soube que está de férias, deve aparecer por aqui em breve. Mas o que eu poderia dizer pra ele? Por que eu queria dizer que ficou tudo bem entre nós? Não ficou. Nunca ficará porque não era mesmo pra ficar. 

Ontem sensações estranhas me aconteceram. Achei que iria dormir mas me veio um desejo intenso de comer hambúrguer. Quis pedir no lugar que a gente sempre pedia, mesmo sabendo que seria uma escolha equivocada. Foi também o último lugar que pedi comida, enquanto acreditava que a gente ainda existia. Acabou aquela promoção dos dois hambúrgueres, sabia?

Ontem comecei a entender que eu estou morando novamente sozinha, depois de dois anos dividindo a rotina. E eu odeio o fato de chorar por conta disso, mesmo nunca tendo sentido falta dele, nem no primeiro dia. Não saber nominar o que tive ainda me causa estranhamento, olho pro passado e vejo borrões com contornos pouco delimitados, como a minha visão míope à noite.

Há três anos eu aguardava ansiosa numa hospedagem perto do aeroporto, com uma carta escrita à mão, um presente e uma flor. Queria que o tempo passasse logo para materializar nossos sonhos. Queria um abraço apertado e um beijo amoroso. Quando não foi assim a chegada e eu deveria ter entendido que esse sinal era mais do que o simples fato de não vivermos um conto de fadas.

Ontem eu olhei pra tudo isso. Quem fui, quem era e quem me tornei. Senti o gosto ácido da raiva e do rancor que vinha ruminando disfarçadamente durante os últimos meses. 

Transformei sem necessidade esse fardo em mais pesado. Carreguei por tempo demais fingindo não ver o que era claro. Não preciso mais voltar pra conferir coisa alguma ou revisitar um suposto erro infundado. Não foi pela nossa relação o luto. 

A verdade é que a garota que eu fora que pode enfim repousar no passado.

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