Faxina

Abriu as gavetas à procura de respostas. O quarto já estava virado de cabeça pra baixo, numa daquelas zonas que levam 3 dias pra arrumar. Roupas de todos os tipos sobre a cama, sobre o sofá e penduradas nas portas do guarda-roupa. Papéis e mais papéis debaixo da cama, do lado do sofá e saindo das gavetas. Bolsas mofadas, bolsas usadas e bolsas novas ensacoladas jogadas pelos lados e lá no canto, encostada na parede da varanda, está ela. Com uma caixa de recordações no colo.

A pior parte da faxina anual é quando ela encontra a tal caixa de recordações, que passa o ano inteiro na terceira gaveta do criado, mas sempre sai de lá por esses dias. Esse é um dos motivos que a fazem protelar a arrumação: chegar nessa caixa é como abrir as janelas do passado pro vento entrar. Quando ele passa, sai espalhando tudo. E arrumar as coisas de volta sempre leva tempo. Pulseiras de eventos, ingressos de boates, convites de festas de aniversários, papéis de carta, presentinhos e lá em baixo, já esquecido, um guardanapo.

Iria escrever os desejos para o ano seguinte, o ritual de sempre. Mas estava difícil começar qualquer coisa com esse algo pesado dentro do peito, difícil de descrever. Não queria uma vida completamente nova, daquelas que desejamos quando sabemos que estamos com a personalidade tortuosa. Não, está satisfeita com sua personalidade. O problema está no destino. O problema está nas pessoas que estão próximas e nas que estão longe. Nos anos que estão passando. No excesso de emails consumistas. Na ausência de comentários inteligentes nas redes sociais. No vazio que dá toda sexta à noite. Nas fotos que vivem sendo pregadas e despregadas do painel. Nas recordações com gosto de chapéu velho. E principalmente, no passado que é tão passado mas que ao mesmo tempo parece não desgrudar nunca. Como um chiclete velho que secou. Acho que é isso. Sua história é um chiclete velho que grudou bem dentro do seu peito e agora está seco, aproximando o coração aos pulmões. Não sabe o que fazer para desgrudá-lo e não consegue respirar assim.

Cada um dos achados tem um peso pra ela. Um congresso que durou três dias, um postal de um lugar que ainda quer visitar, as conversas por folha de caderno que tinha com as colegas na 8ª série, o apito que usou numa manifestação, a primeira ida à boate, o primeiro show de rock. Tudo devidamente acomodado em seu passado, feliz de ver. Menos o guardanapo.
Nele, datado de 6 anos atrás, um "Eu amo você" com assinatura e coração desenhado. Foi o primeiro amor de alguém e isso fica no passado. Sentiu o chiclete ressecando um pouco mais.

O destino foi afastando algumas pessoas, a rotina vai afastando algumas pessoas, ela escolheu se afastar de algumas pessoas. Jogou papéis fora, guardou as lembranças de volta e fechou a caixa. Mas existem amores impossíveis de faxinar.

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